Nélio Bizzo Arquivos » Epidemiologia dos Coronavírus – o que se sabia em 2020

29

dom

Epidemiologia dos Coronavírus – o que se sabia em 2020

Categoria: Blog

Epidemiologia dos Coronavírus – o que se sabia em 2020

PARTE 2 – (para acessar a PARTE 1 clique aqui —-> bit.ly/3bcRR4n)

Estudos epidemiológicos dos casos humanos da pandemia de 2003 apontam para animais selvagens como possível origem do vírus que causou a SARS em 2002 [v. referência 1, link abaixo]. O subsequente isolamento de vírus SARS-CoV-1 de gatos-de-algália, e outros mamíferos susceptíveis a essa infecção, apoiou ainda mais essa suspeita [v. referência 2, link abaixo]. Nesses mamíferos, testes revelaram que cerca de 80% dos animais a venda em um mercado de Guangzhou haviam experimentado contato com o vírus, ao passo que os animais criados em fazendas, ainda não levados para a venda, apresentaram resultado negativo (2), indicando que as gaiolas lotadas de animais e muito próximas umas das outras haviam propiciado a contaminação.

Embora animais exóticos tenham tido contato com o vírus, a via de transmissão em humanos é a disseminação pessoa a pessoa, por meio de contato direto ou indireto das mucosas com gotículas respiratórias infecciosas, ou por meio de contato com objetos e superfícies contaminadas (“fômites”). O SARS-CoV-1 foi detectado nas secreções de vias respiratórias, fezes, urina e lágrimas de indivíduos infectados [v. referência 3, link abaixo].

Acredita-se que a atual pandemia de COVID-19 tenha como agente etiológico o SARS-CoV-2 e seja transmitida da mesma forma. Desta feita, pangolins (fig 1) são os mais prováveis animais nos quais a mutação crucial da proteína “S” pode ter ocorrido (v. postagem anterior).

Pangolim
Fig 1 – Pangolim malaio, animal que vive em florestas tropicais do sudoeste asiático, criticamente ameaçado de extinção, mas alvo de caça e contrabando para utilização na medicina popular oriental.

 

O pangolim figura entre os animais mais traficados ilegalmente no mundo, o que explica inclusive o fato de estar criticamente ameaçado de extinção, sendo habitante de florestas tropicais. Estudo recente verificou que pangolins contrabandeados ilegalmente para o sul da China eram portadores de vírus com material genético muito semelhante ao do SARS-CoV-2, justamente na parte codificante para a nova versão da proteína “S”, responsável pela alta capacidade de contágio pelas vias aéreas superiores. Embora não sejam linhagens idênticas, elas poderiam ser “ancestrais” da linhagem que acabou por causar a COVID-19 (veja box da postagem anterior, e  artigo Lam, et al, Identifying SARS-CoV-2 related coronaviruses in Malayan pangolins, Revista Nature de 26 de Março de 2020).

Se essa hipótese estiver correta, a contaminação humana poderia ter ocorrido diretamente, em humanos que sacrificam e processam os pangolins para a venda de escamas e carne, utilizados na medicina popular oriental. No entanto, seria também possível que os pangolins, como fazem parte de um mercado criminoso, tenham ficado escondidos muito próximos de outros animais, ou escondidos em meio a eles, e que tenha havido um hospedeiro intermediário. De qualquer forma, uma pessoa, ao ter contato muito próximo a secreções do animal contaminado, teria se infectado e iniciado a transmissão entre humanos  .

Em 2003 a transmissão hospitalar de SARS foi facilitada pelo uso de equipamentos respiratórios (nebulizadores, respiradores, equipamento para intubação, broncoscopia ou ressuscitação cardiopulmonar) em pacientes internados. De fato, quase metade dos casos de SARS em 2002-3 foram reputados a contato em unidades de saúde, com correlação positiva entre a número de profissionais de saúde contaminados e número de pacientes atendidos [v. referência 3, link abaixo]. O novo vírus, por ter capacidade muito maior de transmissão já demonstrou que essa via é de fato muito provável, e o pessoal da saúde está exposto a grande risco de contaminação.

Embora a transmissão aérea (na forma de pós seco) tenha sido considerada incomum em 2003, pelo menos um evento foi investigado nesse sentido pois ocorreu em um condomínio residencial em Hong Kong. Tratava-se de um grande condomínio residencial de dezenove edifícios (Amoy Gardens), cada qual com 30 a 40 andares (Fig 2).

Amoy_Gardens
Fig 2 – Amoy Gardens, condomínio residencial em Hong Kong com grave ocorrência de SARS em 2003.

 

Esse conjunto compreende quase 5.000 apartamentos e perto de 11.000 moradores, tendo tido 321 casos comprovados de SARS. No entanto, quase metade (41%) dos contaminados provinha de apenas um dos edifícios (bloco E), onde se originou o caso número 1. Além da hipótese de disseminação pelo ar, foram investigadas outras, como o sistema de água e o de esgotamento sanitário. Esta última suspeita se baseava no fato de haver cargas virais frequentemente altas nas fezes de pessoas após alguns dias de doença. Os ralos do piso dos banheiros podem ter ficado secos, de acordo com o relato de diversos moradores, que se queixavam de mau cheiro, e partículas das descargas de um apartamento poderiam penetrar pelo ralo de outros, fato agravado pela ação de ventoinha de ventilação presente no pequeno banheiro, que favorecia a entrada de gotículas pelo ralo. Além disso, essa ventoinha lançava ar para fora do apartamento e essas partículas poderiam penetrar em outros apartamentos da mesma prumada. Foram feitos testes com marcadores moleculares que comprovaram essa possibilidade. A transmissão por meio da aspiração do spray originado dos ralos foi apontada no relatório final da autoridade de Hong Kong como a causa mais provável [v. referência 4, link abaixo].

A transmissão por poeira seca não foi confirmada embora não tenha sido totalmente descartada. Gatos domésticos do condomínio também foram testados e deram resultado positivo para o vírus, mas provavelmente tenham sido contaminados no condomínio e não vetores da doença [v. referência 4, link abaixo].

Para o caso brasileiro de 2020, tendo em vista a epidemia de dengue cujo pico se espera para Abril, os condomínios poderiam se valer da experiência chinesa e recomendar cuidado redobrado com os ralos dos apartamentos, em especial com os ralos dos banheiros e lavabos (fig 3a). Seria útil garantir que os sifões estejam sempre cheios, mas com algum agente que impeça tanto o desenvolvimento de larvas de mosquitos como a viabilidade de vírus envelopados. Nesse sentido, a utilização de água sanitária seria recomendável. A obstrução com membranas plásticas, mesmo muito finas, seria cuidado adicional útil (fig 3b).

Ralo_lavabo_LD
Fig 3- Os ralos dos banheiros foram apontados como peças fundamentais para a transmissão do coronavírus em um condomínio residencial. Manter ralos com líquido e obstruídos em edifícios é recomendável (A), mesmo com finos sacos plásticos (B).

A transmissão da SARS em aeronaves comerciais foi investigada na mesma época. De um total dos 40 voos investigados, cinco foram associados à provável transmissão a bordo, afetando 37 passageiros. O risco geral de transmissão parece ser baixo, em torno de 1 em 156, com grande variação a depender das condições dos sintomas e cuidados do passageiro doente [v. referência 5, link abaixo].

No caso brasileiro atual, estudo realizado por grupo interdisciplinar com dez cientistas do Brasil e México aponta que o transporte aéreo pode ser crucial na dinâmica da disseminação do SARS-CoV-2 pelo país em 2020. A questão não se refere à contaminação que possa ocorrer no ambiente da aeronave ou do aeroporto, embora ela não possa ser menosprezada, mas o modelo matemático explora a rapidez do deslocamento de portadores de vírus, em especial os assintomáticos. A rede aeroportuária brasileira possui alta capilaridade e permite a rápida disseminação de doenças, que o modelo prevê causar duas ondas de contaminação, com efeitos devastadores na região amazônica. Etnias inteiras podem ser dizimadas [v. referência 6, link abaixo].

A Organização Mundial da Saúde declarou estado de pandemia, ou seja, epidemia mundial, em 11 de Março de 2020, recomendando medidas de isolamento e distanciamento social como forma de deter o rápido aumento do número de casos de COVID-19 em todos os países. medidas higiênicas devem ser redobradas (v. postagem anterior).

Em 27 de Março de 2020 entidades com a maior respeitabilidade emitiram nota comum repudiando a campanha feita pelo Presidente da República exortando os brasileiros a não respeitarem os atos normativos em vigor baseados nas recomendações da Organização Mundial de Saúde que determinam isolamento e distanciamento social (fig 4).

Defesa_Vida
Fig 4. Entidades da mais alta respeitabilidades emitiram nota de repúdio em 27 de Março de 2020.

 

Referências consultadas

[1] https://science.sciencemag.org/content/302/5643/276/tab-article-info

[2] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3323399/

[3] https://cmr.asm.org/content/cmr/20/4/660.full.pdf

[4] https://www.info.gov.hk/info/sars/pdf/amoy_e.pdf

[5] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/nejmoa031349

[6] https://ufop.br/noticias/pesquisa-e-inovacao/pesquisadores-identificam-vulnerabilidade-da-regiao-amazonica-e

OBSERVAÇÃO: as imagens utilizadas nesta postagem foram tomadas como sendo de uso livre para finalidades educacionais não lucrativas, com o único intuito de tornar a leitura mais informativa, no contexto de um website sem finalidade comercial, que não exibe propagandas, não insere cookies e não coleta dados de usuários. Caso alguma das imagens não possa ter seu uso admitido nessas condições, solicita-se comunicação para imediata remoção e pedido de desculpas.

Mais Populares

Charles Darwin e a escravidão no Brasil

Categoria: Ciência

Charles Darwin e a escravidão no Brasil

História das Pandemias virais: a gripe

Categoria: Blog

História das Pandemias virais: a gripe

Esse site é validado pela W3C, desenvolvido de acordo com os padrões de conteúdo e acessibilidade.