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Entrevista completa para Revista LEITURAS DA HISTÓRIA 117 (Setembro 2018)
Leituras da História – Qual a importância histórica do relançamento, na íntegra e sem cortes, de A Origem das Espécies, tal qual foi publicada pela primeira vez em 1859?
Nelio Bizzo – Nesta versão para o português procura-se a máxima fidelidade ao texto original, o que nem sempre ocorreu com outras edições. É interessante que a primeira tradução para o alemão literalmente invadiu o espaço do autor e modificou a obra, em especial retirando a frase “luz será lançada sobre a origem do Homem e sua história”. O tradutor, um reconhecido e premiado paleontólogo que era inclusive citado na obra, Heinrich Bronn (1800-1862), professor da Universidade de Heidelberg, ficou tão chocado com ela que resolveu censurá-la.
LH – Quais foram as principais discordâncias que circularam pela imprensa e na comunidade científica do século 19 em relação a Darwin, quando apareceu pela primeira vez a Origem das Espécies?
Bizzo – Houve uma grande onda de reações, tanto do ponto de vista da crítica leiga como na especializada. Do ponto de vista dos especialistas, foram desde a concordância absoluta até acusações de manipulação tendenciosa de dados. Neste último caso, talvez a reação mais emblemática tenha sido a de Louis Agassiz (1807-1873), que já estava nos Estados Unidos, para onde emigrara, e dirigia o recém-fundado Museu de Zoologia Comparada da Universidade de Harvard. Agassiz, muito citado no livro, publicou um feroz ataque dizendo que Darwin distorcia a moderna Geologia, com deduções ilógicas, e terminava a longa resenha demolidora dizendo ver claramente “inclinações maliciosas” na obra do inglês, uma agressão pessoal. Ele se referia, quase certamente, à frase “a hipótese de Agassiz concorda bem com a teoria da seleção natural” (pág. 339), que não pode ter deixado de enfurecê-lo. O curioso é que Agassiz, cientista rigoroso e criativo, aluno de nomes muito respeitados à época, como George Cuvier e Alexander von Humboldt, apresentou conclusões brilhantes, que entendia serem opostas à teoria da evolução, mas que acabaram contribuindo para sua aceitação. Esse foi o caso de sua reanálise da famosa coleção de peixes fósseis de Cuvier (Revue Critique dês Poissons Fossiles figurés dans l’Ittiolitologia veronesé, de 1835) e sua brilhante teoria da glaciação global, que arruinou a carreira do jovem Darwin geólogo, mas que depois foi reaproveitada por ele mesmo, já na primeira edição do “Origem…”, como alternativa à teoria algo maluca de Edward Forbes, de supostas pontes que teriam ligado continentes. O padre católico Giovanni Serafino Volta (1764-1842) havia publicado uma obra monumental, inclusive do ponto de vista gráfico (Ittiolitologia Veronese), graças ao apoio financeiro da nobreza fugida da França de Napoleão, com pranchas de peixes fósseis em tamanho natural, que pretendiam comprovar que eram da fauna atual, e Agassiz mostrou que a descrição dos fósseis estava simplesmente errada, havia diferenças não notadas pelo padre (ele fala até de erros crassos, como descrever o mesmo peixe duas vezes, só porque o tipógrafo havia invertido a prancha). Em suma, os fósseis eram apenas parecidos com os animais da fauna atual, mas estavam, de fato, extintos. Para os evolucionistas, era uma evidência de que as mudanças eram graduais. Ou seja, Agassiz acabou marcando um tremendo “gol contra” criacionista. É uma pena que Darwin nada fale deste caso, mas teria enfurecido ainda mais o cientista do outro lado do Atlântico.
LH – Porque o naturalista britânico modificou o texto original de sua obra nas edições seguintes?
Bizzo – Eu criei uma palestra, que ainda não transformei em livro, “Duas críticas que mudaram o livro de Darwin”, que fala justamente disso. Antes de qualquer coisa, é necessário dizer que a viagem de Darwin não tinha a finalidade de colher evidências para alguma ideia já existente. Ele embarcou no Beagle com a certeza do criacionismo: todos os seus professores da Universidade de Cambridge eram criacionistas, inclusive o que lhe havia passado o convite para a viagem. O modo de coleta de espécimes, em especial no arquipélago de Galápagos, indica claramente isso. Em segundo lugar, as mudanças mais significativas ocorreram na última edição, em 1872, quando as críticas já haviam se avolumado consideravelmente, com o acréscimo de um capítulo inteiro para fazer frente a elas. Mas, para entendê-lo, seria necessário retomar as críticas. É interessante que algumas das modificações só podem ser compreendidas tendo em vista as outras publicações de Darwin. Por exemplo, nessa primeira edição, ao falar das diferenças “tão fortemente marcadas nas raças humanas”, ele completa o parágrafo com a frase “posso acrescentar que é possível lançar um pouco de luz sobre a origem dessas diferenças principalmente através de um tipo especifico de seleção sexual” (pg 209). Esse trecho foi retirado da última edição, o que levou alguns leitores a pensar que ele teria mudado de ideia em relação à evolução humana, inclusive porque a referência ao “Criador” aparece muito mais nas edições subsequentes. No entanto, Darwin publicara, em 1871, uma extensa obra sobre a evolução humana, Descent of Man, na qual ele lança muito mais do que “um pouco de luz” sobre a questão. Manter aquele parágrafo inalterado no “Origem…” pareceria desatenção.
LH – Tais mudanças foram significativas ou podemos dizer que foram uma mera maquiagem de conceitos, que tinha como objetivo o contentamento geral?
Bizzo – É difícil falar da motivação das modificações. Já na segunda edição, ele introduz uma epígrafe histriônica, de um teólogo anglicano ainda muito popular à época (Joseph Butler, 1692-1752), que utiliza os termos dos atuais defensores do “Design Inteligente”, inclusive utilizando essa expressão. Conversei há pouco com três dos maiores estudiosos da obra de Darwin (James Moore, Jon Hodge e Gregory Radick) e, de fato, a inserção é algo misteriosa. Quando ele revisava a primeira edição, ele estava em uma estação de tratamento de saúde, em Ilkley, no norte da Inglaterra, e recebeu uma carta de um importante ministro anglicano e escritor já famoso, Charles Kingsley (1819-1875), falando de como era nobre a ideia de uma criação dinâmica, formas capazes de autodesenvolvimento. Darwin pede licença para usar a frase, o que de fato faz na segunda edição, com referência a certo celebrated author and divine. Nessa conversa, aprendi que essa celebridade literária e religiosa era Charles Kingsley (e não Baden Powell, como eu pensava), mas fica a incógnita da inserção do tal projeto inteligente de Butler. O fato é que a obra fora acusada de promover o ateísmo e isso seria muito grave naquele contexto. As inserções não podem ser consideradas mera maquiagem, pois o “Origem…” não pode ser considerado um livro materialista, desde a primeira edição, na qual ele já fala das “leis impressas na matéria pelo Criador” (pg. 477).
LH – Porque, desde então, os adeptos da teoria darwinista seguem a prática de tomar como base a sexta edição da obra?
Bizzo – Bem, em primeiro lugar, a preferência pela última edição não é algo que possa ser considerado consensual nem mesmo entre os especialistas de hoje. É claro que, após a morte de Darwin, 10 anos depois da sexta edição, as reimpressões seguiram sendo da última edição, como seria desejo do autor. Além do mais, as críticas que ela respondia, como disse, com um capítulo inteiro, estavam ainda vivas. Publicar uma edição anterior soaria como reconhecimento que as críticas eram irrebatíveis – o que, de fato, não eram – e, além do mais, tratava-se de literatura contemporânea, não de uma obra histórica. Em 1909, a primeira edição ficou sem copyright, e a editora da obra passou a fazer forte propaganda para que fosse comprada apenas a última edição, que gerava rendimentos para a empresa e herdeiros. Livros da editora traziam propaganda dizendo “A primeira edição deste livro, cujo copyright expirou, é uma edição imperfeita, que o autor revisou subsequentemente…”. Era óbvio que essa informação estava ancorada na questão comercial, mas foi veiculada de maneira ampla, o que, de certa forma, deve ter influenciado a opinião pública. A primeira tradução portuguesa apareceu em 1913, quando a primeira edição estava fora de copyright, mas foi utilizada a sexta edição, talvez por conta dessa imagem construída pelo editor. Hoje a situação é diferente, pois as críticas da época – como o questionamento do tempo geológico – já não são reconhecidas como importantes. Até mesmo denominações religiosas fundamentalistas já abandonaram o literalismo cronológico na leitura das Escrituras; portanto, podemos nos permitir uma releitura da obra como um todo, e salientar a radicalidade de sua primeira edição. Em 2009, houve diversas publicações da primeira edição, inclusive a comentada por James T. Costa, uma produção muito importante. A própria EDUSP publicou, há 30 anos, uma tradução da primeira edição. Richard Leakey organizou uma publicação comemorativa do centenário da morte de Darwin, em 1982. Esta obra, foi publicada no Brasil pela UnB-Melhoramentos, no entanto, é uma edição condensada, que suprime trechos importantes do texto original da sexta edição, em especial os que trazem afirmações que não são mais consideradas cientificamente válidas hoje em dia, ou que expressam valores morais que não encontravam consenso fora dos círculos da elite vitoriana da época.
LH – Como a teoria de Darwin se tornou tão impressionante e, ao mesmo tempo, repleta de equívocos entre os não-acadêmicos?
Bizzo – Bem, é preciso lembrar que a obra foi alvo de um planejamento de marketing que é raro ainda hoje em dia, pelo menos ao se tratar de livros. Veja a data da carta daquela influente personalidade, agradecendo a surpresa de ter recebido o livro pelo correio: 18 de novembro de 1859. Kingsley era um religioso progressista, crítico tanto da ortodoxia cega de seu arquidiácono anglicano, como dos chamados não conformistas (batistas, metodistas etc.), que considerava obtusos e avessos a novas ideias. Ele é lembrado ainda hoje por seu “socialismo cristão”, e era, portanto, um aliado crucial. Mas note que o livro foi comercializado para o público muito depois da distribuição estratégica, pois chegou às livrarias apenas no início de dezembro. E isso ocorreu também do outro lado do Atlântico, pois Darwin sabia da pujança da “antiga colônia” americana. Ele havia incumbido seu amigo botânico de Harvard, Asa Gray, de distribuir exemplares para personalidades-chave. Era lá que Louis Agassiz estava. Eu poderia citar outros detalhes interessantíssimos dessa estratégia, da qual certamente o editor, John Murray, participou. Ou seja, o livro não se tornou tão comentado espontaneamente, mas contou com um planejamento de marketing do tipo Steve Jobs! Ouvir falar de algo que ainda não está à venda desperta certos sentimentos. Ou seja, outro mérito de Darwin, que pode ser considerado também empresário epistemológico, no sentido de saber vender suas ideias (meu amigo Marcelo Sanchez, da Universidade do Chile, me incentivou a tornar pública essa definição). Os equívocos são muitos, e derivam, basicamente, de duas vertentes. De um lado, o próprio Darwin escreveu coisas muito equivocadas, a começar pela primeira frase do livro, quando se define “naturalista de bordo do Beagle”, o que, de fato, não era. A partir da quarta edição (1866), ele fala da concordância entre suas ideias e as de Aristóteles, cometendo outro equívoco enorme, que se manteve até a última edição, difundido pelo mundo todo. Muitos desses equívocos são repetidos sem nenhuma crítica pelos leitores de Darwin. De outro lado, existe a vertente histórica. Não se pode ler um livro escrito há mais de 150 anos da mesma forma que se lê um livro de nossa época. É por isso que foi necessário alertar o leitor em muitos momentos: a edição da EDIPRO tem 479 páginas e nada menos do que 690 notas de rodapé. O capítulo 4, Seleção Natural, que é central no argumento do livro, tem 47 páginas e 73 notas; o seguinte, capítulo 5, Leis da Variação, trata de assunto no qual Darwin tinha uma visão totalmente oposta àquilo que depois veio a se chamar “mendelismo”, e precisou ainda mais: são 37 páginas e 78 notas explicativas.
LH – Em pleno século 21, muitos ainda dizem que o ser humano não veio do macaco, sem cogitar um ancestral comum. Ao que se deve esse engano, uma vez que todas as formas de vida são aparentadas?
Bizzo - É interessante que os grandes macacos do velho mundo passaram a ser expostos em zoológicos na época em que Darwin criava e difundia suas ideias. Eu duvido que alguém olhe de perto um chimpanzé, um gorila ou um orangotango, e não reveja suas ideias sobre a origem do ser humano. As semelhanças são impressionantes e Darwin viu que elas se estendiam até aos sentimentos e expressões faciais. Não por acaso, ele passou a frequentar o zoológico de Londres, com especial atenção aos primatas e seus filhotes. O que é importante ressaltar é que o macaco ancestral não é nenhuma espécie da fauna atual, mas uma espécie extinta do passado. Essa semelhança incrível levou Lineu, o naturalista do século 18, assumidamente criacionista, a criar o grupo dos Primatas e nele inserir todos os macacos e o ser humano! A semelhança é indiscutível, e ela é ainda maior quando se levam em consideração os dados moleculares recentes.
LH – Se a teologia não aceitava a extinção, pois criar uma espécie apenas para dizimá-la seria um indício da falibilidade divina, podemos dizer que tal ideia, como processo permanente, teve em Darwin sua principal referência?
Bizzo – A questão das extinções foi muito discutida no século anterior ao de Darwin, mas não se conheciam os mares do Sul. Depois que James Cook confirmou a suspeita dos astrônomos de que havia uma grande massa continental totalmente desconhecida, ninguém poderia afirmar com certeza que uma espécie conhecida pelos fósseis não poderia estar vivendo por ali, grande ou pequena, na terra ou no mar. A questão das extinções foi solucionada por Cuvier, mas Serafino Volta ainda difundia seu trabalho, publicado originalmente em 1796, sobre a atualidade das espécies fósseis, inclusive se valendo de exemplares da região da Austrália, aos quais poucos tinham tido acesso em seu tempo. Pouquíssimos especialistas poderiam criticar sua afirmação de que certas espécies fósseis de peixes estavam vivendo nos recém navegados Mares do Sul. Quase que por ironia, coube a Louis Agassiz, em 1835, apontar os erros de Serafino Volta! Mas Cuvier criara uma explicação para as extinções, que contava com a aprovação dos teólogos de seu tempo (ele era luterano, mas a França era fortemente católica), ao explicar as extinções como consequências de catástrofes. A geologia também complicava a situação, pois justamente na França haviam sido descobertas camadas geológicas que alternavam presença e ausência de certas espécies fósseis, o que sugeria que espécies extintas poderiam reaparecer posteriormente. A hipótese era a de que se as condições ambientais mudassem, poderia haver extinção, mas se eles voltassem à condição anterior, então as espécies mudariam de novo e voltariam a existir. Ou seja, Darwin viveu em um tempo em que havia dúvida se as extinções eram definitivas ou não. A ideia de que a existência das espécies era, de alguma forma, cíclica, com etapas de surgimento, florescimento e extinção, cumprindo um ciclo análogo ao dos indivíduos, havia sido proposta em 1814. Ela é conhecida como “Analogia de Brocchi”, em referência a Giovanni Battista Brocchi (1772-1826), cientista italiano que mantinha contato com Cuvier e os grandes geólogos britânicos de seu tempo. Sem saber que aquelas camadas geológicas, as chamadas “colônias do senhor Barande” (pág. 317) eram, na verdade, dobramentos, Darwin argumentou do ponto de vista conceitual, pois a teoria que havia desenvolvido, que todos os seres vivos são aparentados, implicava a irreversibilidade das extinções, da mesma forma que os descendentes de uma mesma família humana, em diferentes gerações, podem ser parecidos, mas nunca idênticos. Darwin argumentou que essa era uma lei geral, decorrência de sua teoria. Ele nos assegurou que extinção é para sempre. E nisso estava corretíssimo.
LH – Apesar das teorias do naturalista britânico, há uma enorme quantidade de pessoas que ainda nega fatos como a evolução, o aquecimento global e até o formato da Terra. Tudo isso demonstra que a divulgação científica se faz mais necessária que nunca ou a religiosidade, que prega a providência divina, ainda é mais dominante que a intelectualidade?
Bizzo – Darwin era amigo de cientistas religiosos que eram evolucionistas, como Asa Gray, que pregavam ativamente a ideia da possibilidade pacífica entre ciência e religião, seguindo, aliás, a tradição galileana do concordismo. Mas tenho minhas dúvidas se Darwin era, ele próprio, um concordista galileano. Richard Dawkins defende acirradamente a impossibilidade de conciliar a racionalidade científica com o dogmatismo religioso, mas outros evolucionistas não têm essa certeza. Terry Eagleton, conhecido marxista, chega a dizer que Dawkins, ao pregar a possibilidade de um mundo melhor sem religião, nada faz além de difundir certas superstições. Darwin não quis participar desse debate de maneira pública, mas reservadamente ele se manteve um agnóstico, ou seja, alguém que simplesmente não conhece as causas. Seus escritos e epígrafes, como dito, não mostram isso claramente, mas estamos naquela segunda vertente de que falei, do anacronismo de certas leituras. Hoje qualquer professor de Cambridge ou Oxford pode se dizer ateu, mas naquela época isso não seria tolerado nem aos alunos! Há exemplos recentes de grandes nomes do evolucionismo, como Theodosius Dobzhansky, que se manteve religioso (era cristão ortodoxo). Entre nós, o saudoso professor Newton Freire-Maia, grande nome da genética humana, manteve-se sempre fervoroso católico. Em suas cartas, falando de Darwin e do “Origem…”, costumava inserir uma benção divina ao destinatário.
LH – Embora a teoria de Darwin se refira ao universo da vida biológica, como e quando se começou a difundir interpretações que utilizaram a Teoria da Seleção Natural como instrumento de análise do meio que, por sua vez, alicerça-se em ideologias racistas e preconceituosas?
Bizzo – Essa é uma questão extremamente polêmica, que discuto em meu livro Meninos do Brasil (Ed. do Brasil, 2013). Não há consenso nem mesmo na família que conviveu com Darwin. Francis Galton (1822-1911), seu primo, criou o termo “eugenia” e trabalhou muito por ela, nos dois lados do Atlântico. Seu livro inicial é de 1869. Um dos filhos de Darwin, Leonard Darwin (1850-1943), foi grande líder do movimento eugênico e defendeu coisas horríveis, como esterilização compulsória de certos tipos humanos. Na mesma época, se esterilizavam pessoas míopes em certos países europeus. No entanto, seu primo, Josiah Clement Wedgwood (1872-1943) foi membro do parlamento e combateu ferrenhamente as ideias do parente, dizendo que ele “tratava os trabalhadores como gado”, enquanto Leonard Darwin o chamava de “inimigo da raça”. Acredita-se que a legislação eugênica britânica promulgada em 1913 tenha sido aprovada com o veto à esterilização compulsória graças à militância de Wedgwood. Os dois primos diziam ser seguidores de Darwin. Leonard, que não teve filhos, foi o mentor de um dos maiores ícones do evolucionismo do século 20, Ronald Fisher, responsável por quase toda genética de populações que os biólogos estudam na graduação no mundo todo, até hoje.
LH – Certas versões de darwinismo social dizem que as sociedades evoluem naturalmente até estágios superiores de civilização. Se é assim, como explicar o colonialismo e a dominação dos ditos povos inferiores?
Bizzo – A aplicação de algumas ideias de Darwin ao mundo social foi realizada por conta e risco de seus autores, a começar pelo próprio inglês. Uma coisa é observar um comportamento na natureza, como um leão matando um filhote de uma fêmea após vencer um confronto com o macho que a acompanhava, ou uma abelha recolhendo néctar e voltando disciplinadamente para a colmeia e fabricar o mel. Outra coisa é pensar que maridos devem assassinar enteados e operários não podem fazer greves, pois essas seriam determinações da natureza. Leonard Darwin, depois da derrota na legislação eugênica, cuja promulgação, como disse, vetou o artigo que permitia esterilização compulsória de certas pessoas, fundou uma associação para educação eugênica e, em 1926, publicou um livro, The Need of Eugenic Reform, no qual, aliás, agradece a revisão cuidadosa e a assessoria estatística de Ronald Fisher. O livro tem capítulos como o XXI, “A eliminação dos menos aptos”, cuja seção final versa sobre detenção e esterilização. A dedicatória do livro é comprometedora, pois afirma ter certeza que escrever esse livro teria sido desejo de seu pai, a fim de colocar sua obra à disposição da humanidade; por isso, o livro é dedicado a Charles Darwin!
LH – Em 2015, no que se basearam os especialistas acadêmicos, vendedores de livros, bibliotecários e editores na edição inaugural do Academic Book Week para escolher a Origem das Espécies como o livro mais influente da história?
Bizzo – Poucas obras mudaram o pensamento ocidental de maneira tão profunda, tratando da origem dos seres vivos e de nós mesmos, da maneira que nascemos e vivemos em sociedade.Eu diria que qualquer pessoa, ao ler o Origem das Espécies, certamente irá rever o que pensa sobre si, suas origens, as origens do mundo, e a maneira como pensa a natureza e o sobrenatural. É interessante que aquela carta influente de Charles Kingsley, recebida em 18 de novembro de 1859, fala que “se vós estiveres correto, isso me obrigará a desistir de muito daquilo no que acredito e tenho escrito”. De fato, acho que foi isso que ocorreu com o reverendo Kingsley e com boa parte da humanidade, pois Darwin, na parte essencial de seu trabalho, estava correto.
LH – Além de Darwin, quem são os grandes nomes do Evolucionismo que deveríamos conhecer até mesmo para melhor entender a Origem das Espécies?
Bizzo - Existe certa concordância entre os especialistas com a definição de John Colton Greene, que o darwinismo original, entre 1859 e 1864, foi compartilhado por quatro nomes: Charles Darwin, Alfred Russel Wallace, Thomas Huxley e Herbert Spencer. Depois dessa época as divergências ficaram mais evidentes. A geologia de Darwin foi fortemente influenciada por Charles Lyell, e sua botânica dependia de Joseph Hooker e de Asa Gray principalmente. Nem todos eram evolucionistas ou agnósticos, apenas Hooker era docente universitário (em Harvard), mas todos mantinham contato regular com Darwin. Richard Owen é outro nome importante, em especial o livro no qual ele apresenta seu conceito de homologia (Nature of Limbs), muito usado (e citado) por Darwin, apesar do rompimento que houve entre eles. Richard Owen definia a seleção natural como “mecanismo homeopático”, mas Darwin utilizou sua anatomia comparada (muito boa por sinal!) em favor da teoria da evolução, o que o irritou profundamente. De fato, para entender o “Origem …” é necessário conhecer o trabalho de muitos cientistas, alguns deles, como Cuvier e Agassiz, frontalmente opostos à teoria da evolução.
LH – A quem se destina a obra que acaba de ser lançada? No caso do leigo, de que forma ela deve ser lida?
Bizzo – A edição da EDIPRO se destina a um público amplo. Acabo de resgatar em meu arquivo uma carta que me foi mandada pelo saudoso professor Newton Freire-Maia em 1987, na qual ele fala literalmente que seria um perigo se estudantes de graduação lessem Darwin no original, pois não seriam capazes de discernir o que continua correto, incorrendo no erro de aceitar “teses erradas, pensado que, pelo fato de serem de Darwin (o perigo do figurão!), devem estar corretas”. De certa forma, esse alerta do professor Freire Maia nunca saiu de minha cabeça, e fico contente de ter contribuído para que não só alunos de graduação, mas até mesmo cidadãos comuns, possam ler Darwin no original. Em que pese o fato de nenhuma revisão técnica ser perfeita, acredito que esta edição apresenta uma tradução muito cuidadosa, esclarecendo termos técnicos e tentando explicar até mesmo os cálculos de idade geocronológica da famosa formação do Vale de Weald (pág. 291). Há alertas para os erros de Darwin, não apenas para as desatualizações, mas também para as concepções equivocadas, por exemplo, a ideia de que certos animais, como a piramboia e o ornitorrinco (que ele chama de “fósseis vivos”), chegaram a nossos dias, pois habitariam locais isolados, nos quais supostamente não haveria seleção natural. Aqui ele se contradiz de maneira constrangedora. Nesses pontos foram inseridas notas com o alerta (nota 23, pág 425), a fim de evitar o que afligia o professor Newton Freire-Maia, o perigo do “figurão” aplacar a crítica. É assim que o livro deve ser lido: com muita crítica.
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