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O que todo professor de biologia deveria saber sobre maconha – parte 1

Categoria: Ciência

O que todo professor de biologia deveria saber sobre maconha – parte 1

BREVE HISTÓRIA

O Brasil é um dos países pioneiros na pesquisa científica sobre o uso terapêutico de substâncias extraídas da maconha. Em 2015, a Agência Nacional de Vigilâncoa Sanitária (ANVISA) retirava da lista de substâncias proibidas uma substância derivada da maconha, o canabidiol. Definitivamente, o tema está na mesa: o que é, afinal, a maconha e qual valor moral devemos ter em relação a ela e seus derivados? O professor de Biologia é, provavelmente, o principal alvo de perguntas dessa temática na escola e não pode deixar de ter conhecimentos básicos sobre o tema. Os livros didáticos de Biologia evitam abordar o tema de maneira mais alentada. Então, vamos lá!

Cannabis sativa é uma planta com a qual se produz a droga ilícita mais consumida em muitos países, inclusive no Reino Unido, onde é cultivada legalmente com finalidades medicinais. Seu uso humano não é recente, pois há registro de que a planta já fosse utilizada como fonte de fibras têxteis há 6.000 anos, na China. É de lá que provêm os mais antigos registros de seu uso medicional, que datam de cerca de 3.000 anos, mas que provavelmente se originaram na medicina ayurvédica, o conhecimento médico mais antigo do mundo, que se desenvolveu na região da Índia (ayurveda significa, em sânscrito, “ciência”, “conhecimento”). Há registro de seu uso em um importante papiro egípcio de 1700 AC, encontrado no Templo de Ramsés II, em Luxor, no qual estão descritos em detalhe procedimentos médicos. Entre nós, é sabido que a maconha era largamente utilizada pelos escravos no Brasil, como diz Gilberto Freire em seu livro “Casa Grande e Senzala”. Eles a teriam trazido da África, mas ele cita como origem da informação o historiador baiano Manuel Querino (1851-1923). O nome “maconha”, afinal, é de um dialeto angolano. Essas referências do Egito e de seu uso pelos africanos escravizados são indícios de uma possível origem africana da planta, embora sejam inconclusivas. Assim, não se sabe ao certo onde a planta se originou, mas acredita-se que muito provavelmente provenha dos lugares onde foram encontrados os registros mais antigos de seu uso, como o norte da Índia e a parte mais ocidental da China.

Um detalhe interessante sobre o nome mais utilizado por muito tempo nos Estados Unidos para designar a planta, “marijuana”, foi difundido com o propósito de ligar a planta a criminosos mexicanos, “demonizando” a erva.

MACONHA COMO REMÉDIO

O emprego da maconha na medicina está renascendo, com indicações diversas, desde par tratar crises convulsivas graves, ser de utilizada no tratamento do Mal de Parkinson, retardar o avanço do Mal de Alzheimer, e ser importante coadjuvante da quimioterapia, aliviando graves efeitos colaterais. Na verdade, diante do escopo de tempo de seu uso, pode-se dizer que ele ficou eclipsado por relativamente poucos anos. Na Índia ela foi usada continuamente, com finalidades religiosas e como remédio para tratamento dos espasmos causados pelo tétano, e a experiência colonial britânica a introduziu oficialmente no país em 1841, como uma tintura com indicações terapêuticas. Na primeira edição do Manual Merck, de 1899, o livro de referência médica mais utilizado pelos profissionais de todo o mundo até hoje, ela era listada como um remédio eficaz contra várias formas de dor, mas foi gradativamente ficando fora de uso nos cem anos que se seguiram, até que a indústria farmacêutica a redescobrisse, como ocorre hoje em dia.

Remédio de Maconha

Fig. 1 – Abrangência da comercialização do remédio feito a partir da maconha no mundo

Na Inglaterra foi licenciado em 2010 o spray para uso oral Sativex (GW Pharmaceuticals, distribuído no Brasil pela Beaufour Ipsen Farmacêutica, com o nome de Mevatyl), indicado para pacientes com esclerose múltipla, uma doença degenerativa muito grave. Seu uso já foi autorizado em diversos países da Europa, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia e está sob análise em diversos outros (Fig 1). De um lado, o interesse farmacêutico se amplia pelo fato de o THC reforçar a ação de medicamentos utilizados no tratamento do glaucoma, relaxantes musculares, broncodilatadores e manter interação medicamentosa com drogas antiepiléticas e potencializar a ação analgésica de opiáceos. Além disso, tem efeito estimulante do apetite.

Pacientes com a Síndrome de Dravet sofrem convulsões frequentes, as quais, não raro, duram mais de duas horas. A medicação convencional é muito cara, importada, e muitos pacientes não respondem bem a ela. Com  canabinoides, há casos relatados nos quais os pacientes conseguiram não apenas tornar as crises mais espaçadas, como também muito mais curtas, passando de duas horas para algo como um ou dois minutos. Trata-se, portando, de importante redução, com melhora da qualidade de vida, não apenas para os pacientes como também para a família e cuidadores. Atualmente (2017) está sob fase final de testes um novo fármaco da mesma empresa (“Epidiolex”),
indicado para a Síndrome de Dravet, Síndrome de LENNOX-GASTAUT, esclerose tuberosa e outras indicações para tratar uma condição rara ligada a espasmos em bebês.

No entanto, o uso recreativo da maconha envolve diversos riscos, por exemplo ao potencializar a ação de outras drogas de uso recreativo, inclusive lícitas, como o álcool. Existem algumas indicações que seu consumo pode estar associado à chamada “escalada”, na qual o uso esporádico de uma droga incentivaria o uso de outras, e esse é um dos argumentos utilizados contra sua legalização. Além disso, há comprovado risco de problemas graves com jovens adolescentes, que teriam predisposição para desenvolver problemas psicológicos, e o uso recreativo da maconha acabaria precipitando problemas muito graves, os quais poderiam não aparecer, malgrado a predisposição, se não fosse disparado o gatilho a partir do contato com a droga.

O grande problema é que o uso medicinal é acompanhado por médicos, o que pode evitar uso indevido, mas o uso recreativo é mediado por criminosos de todo tipo, os quais não se importam com a saúde de seus clientes.

BOTÂNICA DA MACONHA

A maconha é uma angiosperma anual e dióica, reconhecida desde os antigos chineses como sendo composta por plantas masculinas e plantas femininas, designadas por ideogramas distintos. A polinização natural é realizada pelo vento e sua floração depende da duração da luz do dia, fator que é explorado no cultivo em estufas no Reino Unido.

O gênero Cannabis tem três espécies, (C. sativa, C. indica e C. ruderalis), sendo que apenas a C. sativa, de maior porte,é cultivada com propósitos medicinais e psicoativos. As outras duas espécies são chamadas popularmente de cânhamo, têm pequeno porte (em especial a C. ruderalis) e são utilizadas para produção de fibras têxteis e de sementes, das quais se extrai óleo. A principal substância psicoativa é o THC (tetraidrocanabinol), embora se acredite que ela não responda sozinha pelos efeitos do consumo da planta, havendo indicações de interações com pelo menos outras duas substâncias, o canabidiol (CBD) e o canabinol (CBN). As plantas de cânhamo de uso agrícola derivam de plantas cuja produção dessas substâncias, chamadas canabinoides, é desprezível, sem qualquer efeito psicoativo. Em plantas selvagens, a produção de THC do cânhamo é baixa, com níveis altos de CBD, ocorrendo o contrário com plantas de maconha, sendo que esses níveis são determinados geneticamente.

O declínio do uso medicinal da maconha foi acompanhado do aumento de seu uso recreativo. Ao contrário do que geralmente se pensa, as folhas da planta, embora possuam forte odor característico quando queimadas, não possuem substâncias psicoativas em quantidade significativa. A maior parte da maconha consumida ilegalmente no Reino Unido deriva de partes florais não fertilizadas da planta feminina, conhecida como “skunk” na gíria local, ou “sinsemilla” no mercado internacional (“sem semente”, em espanhol). Os canabinoides, junto com outros compostos, são produzidos em abundância nos tricomas glandulares que protegem os cálices florais e brácteas das flores femininas. Nesses tricomas há estruturas com a forma de alfinete com cabeça, na ponta dos quais uma glândula esférica (seta vermelha da figura 2) utiliza a radiação ultravioleta (UVB) da luz solar para combinar os componentes químicos que resultam nos canabinoides, que ficam retidos em sua frágil superfície. A absorção dessa radiação tem efeito protetor do tecido reprodutivo localizado logo abaixo, da mesma forma que a absorção de infra-vermelho, formando um mecanismo muito interessante de controle de temperatura e proteção do material genético das células reprodutivas

Glândula do tricoma da base de flor feminina de Cannabis sativa

Fig. 2 – Glândula do tricoma da base de flor feminina de Cannabis sativa com cerca de 0,1 mm de altura, com destaque para a estrutura glandular esférica (seta vermelha).

Outras estruturas, não tão conspícuas, também secretam canabinoides e outras substâncias, em boa quantidade, sempre em estruturas globulares parecidas com a apontada na Fig. 2, que depende da radiação ultravioleta (UV-B) para a síntese química. O odor característico da planta, quando fumada, nada deve às substâncias psicoativas ou a outros canabinoides, mas a óleos essenciais, substâncias da classe dos monoterpenos.

As plantas do gênero Cannabis são anuais, isto é, se comportam como o milho, por exemplo, tendo um ciclo de crescimento rápido, floração e frutificação que não excede um ano. A floração indica a proximidade do fim do ciclo vital, e depende de um certo “gatilho”, disparado pelo encurtamento da duração da luz do dia, mecanismo comum em plantas que vivem fora da faixa tropical, adaptadas a altas latitudes, onde a duração do dia varia muito entre o inverno e o verão. As plantas masculinas são as primeiras a florescer, produzindo uma quantidade copiosa de pólen, canalizando sua maquinaria enzimática nessa produção, em lugar de produzir substâncias de defesa, razão pela qual não são úteis para a produção de substâncias psicoativas. Essa floração dura poucos dias e as plantas secam logo em seguida cedendo lugar para as plantas femininas, que crescem com suas flores fecundadas, em busca de mais luz solar. Quando as plantas femininas são cultivadas na ausência de plantas masculinas, sem a formação de semente, a produção de botões florais em suas inflorescências é ampliada; com a ausência de sementes, há mais energia e nutrientes disponíveis, o que leva essas inflorescências sem semente (“sinsemilla”) a serem muito mais ricas em canabinoides. Acrescente-se a isso o fato de as flores femininas possuírem muito mais tricomas que as masculinas, o que torna o tecido floral feminino a fonte mais importante de produção de substâncias psicoativas.

As plantas femininas que crescem na ausência de pólen estendem sua vida e acabam formando flores com anteras produtoras de pólen, com poder fecundante efetivo. No entanto, as sementes produzidas geram apenas plantas femininas, o que é particularmente interessante para os produtores da variedade “sinsemilla”.

FUNÇÕES DO THC NA PLANTA

Há muitas conjecturas sobre a razão de substâncias como o THC serem encontradas na natureza, sendo que alguns chegam a reputar a substância como um “presente da natureza”. A verdade é que os principais canabinoides das plantas selvagens de maconha, THC e CBD, têm propriedades medicinais, analgésias, anti-inflamatórias e anti-espasmódicas, mas apenas a primeira é psicoativa. Na bases das flores femininas, essas substâncias ficam dissolvidas junto a outras dentro da reserva glandular, a qual se rompe facilmente. Quando isso ocorre, o líquido extravaza e escorre pela estrututa que o sustenta, criando uma grande área de contato com o ar, o que facilita a vaporização das substâncias voláteis, inclusive dos óleos essenciais que lhe conferem o odor característico. Assim, ao perder a fração lipídica, as substâncias remanescentes formam uma resina com grande poder adesivo, formando uma pasta que se endurece progressivamente, que é a base de outra forma da maconha, uma substância resinosa chamada haxixe.

Assim, na natureza, um inseto que tente chegar à parte mais nutritiva da flor, onde se desenvolve a semente, terá de passar por uma selva de ampolas que, ao se romperem, criação uma cola adesiva, funcionando exatamente da mesma forma que as plantas carnívoras do gênero Drosera (fig 3)

Plantas do gênero Drosera

Fig. 3 – Plantas do gênero Drosera aprisionam insetos com substâncias adesivas
secretadas por estruturas glandulares.

Muitos insetos, quando aprisionados dessa maneira, se agitam ferozmente e emitem um ferormônio característico, que sinaliza sinal de perigo, espantando outros insetos. Assim, o odor caracterísrico da planta pode ser rapidamente associado com perigo, espantando animais que pretendam predar suas sementes. As folhas da planta, por seu turno, têm tricomas em forma de espículas, que produzem pequenos machucados na mucosa buca de mamíferos herbivoros. Assim, a presença dessas substâncias certamente foi favorecida pela seleção natural, ao proteger as sementes e aumentar a descendência das plantas que conseguiam ampliar sua presença nas gerações seguintes, com maior sobrevivência de sementes a cada ano.

Confira a segunda parte, aqui.

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