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Prefácio da nova tradução da 1a. edição de “A Origem das Espécies

Categoria: Animais

Prefácio da nova tradução da 1a. edição de “A Origem das Espécies”

 

Prefácio

 

Charles Darwin certamente dispensa apresentações. Esse inglês nascido no início do século XIX foi uma das pessoas responsáveis pela maneira como a humanidade entende hoje a diversidade biológica. Ele escreveu vários livros, mas nenhum deles foi tão polêmico ao ser lançado quanto este que o leitor tem em mãos. Outras edições se seguiram, com algumas alterações que poderiam ser tomadas como tentativas de diminuir o choque provocado no grande público, ou estratégias de defesa diante das muitas críticas recebidas. A versão original traz a radicalidade de suas ideias exposta de forma direta, sem requerer do leitor o conhecimento das reações do grande público, praticamente tomado de surpresa, ou detalhes das críticas das numerosas resenhas que se seguiram a seu lançamento, em novembro de 1859.

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Nelio Bizzo e Randal Keynes, tataraneto de Charles Darwin.

O editor, John Murray, anunciava o lançamento, para aquela venda de final de ano, de um livro muito aguardado, pois iria revelar os mistérios que envolviam o desaparecimento de mais de uma centena de tripulantes da expedição mais ousada daquela época. Após numerosas tentativas, finalmente retornara à Inglaterra o capitão McClintock[1] com seu relato dos achados dos dois navios desaparecidos anos antes no rigoroso inverno do Ártico. Seu relato era dramático, com revelações inéditas de seus grandes achados, como o diário de bordo de Sir Franklin[2], o experiente comandante da missão coberta de mistério, revelando o dia exato e as circunstâncias de sua morte. Já fora noticiado o achado de um esqueleto e dois corpos congelados de membros da desesperada tripulação, ainda vestindo roupas europeias. O livro traria até mesmo figuras com a estampa do tecido das mortalhas encontradas.

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O diário de bordo achado pela expedição do capitão McClintock trazia a localização precisa do local em a expedição de Sir Franklin havia encalhado no gelo do Ártico.

 

Todos queriam saber daqueles heroicos homens, que haviam aceitado o desafio de achar a “Passagem Noroeste”, buscada desde Francis Drake e seu lendário navio Golden Hind. Ela seria uma rota marítima alternativa, no extremo norte da América, uma passagem estratégica ligando Atlântico e Pacífico, permitindo evitar o tempestuoso Cabo Horn, no extremo sul do continente, e o estreito de Magalhães, dominado pelos espanhois. O livro do capitão McClintock, preparado em apenas 60 dias, um prazo incrível até para os editores da atualidade, permitia entender em detalhes o que ocorrera com a tripulação dos dois navios encalhados no mar congelado, caminhando até caírem, um a um, mortos por desnutrição, escorbuto e frio.

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As imagens do trágico e misterioso naufrágio povoaram a mente de artistas por mais de um século.

Essa história é tão dramática e comovente, que incentivou buscas até nossos dias. De fato, finalmente, em setembro de 2016 foram encontrados, em surpreendente bom estado de conservação, os destroços do naufrágio, do HMS Erebus, e do HMS Terror, imponentes navios com mais de 300 toneladas, sepultados no fundo mar do Ártico. Eles eram, já em seu tempo, exemplares da supremacia tecnológica britânica, e até mesmo orgulho nacional, pois haviam sido originalmente construídos como vasos de guerra, o que explicava sua robusta estrutura interna. Equipados com potentes obuses, capazes de lançar bombas mortíferas a grande distância, possuíam estrutura adaptada para resistir tanto ao ricochete de disparos grandes petardos, como a choques com icebergs, inaugurando a linha de navios quebra-gelo. De fato, o HMS Terror servira na Guerra de 1812[3], com seus dois obuses e dez canhões bombardeando o Forte McHenry, em Baltimore, em Setembro de 1814, uma batalha que inspirou a letra do atual hino dos Estados Unidos da América[4].

Erebus_1
Em 2016 foram encontrados os destroços do HMS Erebus, em incrível estado de conservação.
 

O sucesso imediato desse aguardado livro certamente impulsionou as vendas de outros da mesma fornada, entre eles “Origem das Espécies”. De fato, o natal britânico de 1859 foi recheado de resenhas sobre os novos livros, e o de Darwin acabou por provocar reações iradas, não apenas de fundamentalistas alinhados com certos dogmas religiosos, mas também dos cientistas que aceitavam a transformação dos seres vivos, mas apenas como resultado direto da ação de suas ações ou das condições ambientais. Essas duas perspectivas colidiam frontalmente com as ideias de Charles Darwin, que via na seleção de formas bem-sucedidas a chave da compreensão da diversidade, seja de variedades de animais e plantas cultivadas nas fazendas europeias, seja nas múltiplas formas de seres vivos de campos e florestas ao redor do mundo. Se após centenas ou milhares de anos já era possível reconhecer em chácaras e sítios formas muito diferentes de galinhas, pombos, couves, rabanetes e ervilhas, o que não seria possível encontrar em florestas cheias de formas de vida após milhões de anos? Essa era a essência do pensamento darwiniano, aqui apresentado de maneira cristalina nesta primeira edição, permitindo explicar a diversidade biológica de nosso planeta em bases científicas modernas.

 

Era bem conhecida a epopeia de Darwin em sua viagem ao mundo, a bordo do HMS Beagle. Mas é interessante ressaltar que “Origem das Espécies” se valia de achados também de expedições anteriores justamente daqueles navios misteriosamente desaparecidos, dos quais tanto se fala, desde 1859. Em uma delas, Joseph Hooker[5] realizou uma série de achados botânicos e paleontológicos a bordo do HMS Erebus, que o notabilizaram desde a juventude, e que apareciam agora, pelas mãos do amigo Darwin, como robustas evidências da teoria da evolução. O ineditismo de plantas e animais das terras do hemisfério sul teve papel central na argumentação de Darwin, que se valia das opiniões de especialistas, como o amigo botânico, ao lado do jovem Huxley[6], zoólogo que logo se juntaria na defesa do evolucionismo.

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HMS Erebus, navio militar adaptado para expedição polar, pioneiro da classe dos navios quebragelo.

Mas a teoria não respondia a várias questões, inclusive de fatos bem estabelecidos à época. Por exemplo, ao discutir os instintos, ele chama a atenção para as formigas de correição, que existem na Amazônia e nas florestas da África Ocidental. Seriam aparentadas? Como teriam atravessado o Atlântico? Esta era justamente uma das dificuldades da teoria, que mereceram um capítulo à parte.

 

Darwin procurava por explicações para as dificuldades de sua teoria pelo menos desde 1842, quando escreveu um pequeno resumo de suas ideias. No caso das formigas, contudo, o futuro se incumbiu de resolver esse mistério, depois de estudos genômicos recentes revelarem que, de fato, as espécies dessas formigas da África e América do Sul tiveram um ancestral comum no Cretáceo, quando os dois continentes ainda estavam unidos. Naquela época não havia indícios suficientes para crer que todos os continentes tivessem formado um bloco único em um passado remoto. Hoje há consenso entre os geólogos que os continentes são jangadas da crosta terrestre a se deslocar lentamente. Essa teoria teria poupado muito trabalho mental a Darwin e não apenas nos capítulos finais.

 

Por vezes, sua argumentação, mesmo a apoiada em especialistas como Hooker, não resistiu ao tempo, mas isso não enfraqueceu o raciocínio de Darwin, aliás, em alguns casos, muito ao contrário. Ele se viu em maus lençois quando o famoso botânico lhe garantiu que os campos da Patagônia e da Europa eram povoados exatamente pelas mesmas espécies de capim. Isso era tudo o que seus adversários queriam, um “arquétipo ideal” único servindo de molde para criaturas de todo o planeta se ajustarem a detalhes locais.

 

Diante de uma dificuldade como essa, Darwin se serviu de arroubos de inspiração colonialista ao estender os resultados de animais invasores para as plantas europeias supostamente colonizando o hemisfério sul. As lebres inglesas haviam suplantado com facilidade os herbívoros marsupiais australianos, e os vira-latas europeus haviam feito sucumbir com facilidade os marsupiais com dentes caninos nas ilhas do sul. Darwin então recorreu à supremacia imperial britânica, estendendo o poder de enfrentar e derrotar semelhantes sem piedade, fossem aborígenes neozelandeses, mamíferos marsupiais ou ervas sulamericanas. Britânicos guerreando ao redor do mundo não constituía novidade naquela época, e Darwin acabou se servindo dessa platitude colonial patriótica para salvar seu argumento e tirar o sabor da vitória da boca dos defensores das formas arquetípicas. Se as gramíneas eram iguais na Inglaterra e nos pampas argentinos, isso seria explicado, antes que pelos arquétipos, pela superioridade das estirpes britânicas.

 

Aqueles grupos de monocotiledôneas são de classificação muito difícil, e as modernas ferramentas mostraram que as duas floras são absolutamente distintas, com ancestral comum remoto. Assim, a moderna classificação botânica, em especial das gramíneas e ciperáceas, acabou por confirmar as ideias darwinistas originais, conferindo status único a essas plantas nos pampas e nas pradarias europeias. Assim, o colonialismo imperial botânico de Darwin restou totalmente dispensável, da mesma forma que os arquétipos ideais de seu ferrenho crítico, Richard Owen[7].

 

A parte final do livro foi planejada de maneira meticulosa. Darwin combinou dois capítulos sobre o registro geológico, seguidos de outros dois sobre a distribuição geográfica. No primeiro de cada dupla, enfrenta as críticas, reconhece fragilidades, mas demonstra a certeza de que o futuro se incumbirá de elucidar os casos aparentemente sem explicação.

 

Nesses capítulos pareados finais, Darwin reservou o primeiro para enfrentar dificuldades e obstáculos com seu trator intelectual; no seguinte, ele pavimenta o caminho para chegar muito mais longe do que seus adversários. Ele apresenta evidências robustas contra os argumentos dos defensores da criação especial e independente das espécies, demonstrando, por vezes, uma inegável ousadia teórica, esgrimindo sozinho seu espadachim intelectual escada acima contra numerosos oponentes raivosos. Este será o caso da defesa da ocorrência de um período glacial de escala planetária em época “recente”, ideia curiosamente defendida por um retinto anti-evolucionista, Louis Agassiz.

 

Embora de início bem recebida pela geologia britânica nos anos 1840, a ideia logo cairia em desgraça, levando geólogos de renome a desmentir sua adesão à ideia, hoje tão bem consolidada. Para Darwin, que já tinha respeitável estatura científica nos domínios geológicos naquela década, a ideia ajudava a entender muito da distribuição geográfica atual, em especial a similaridade das biotas da Europa e América do Norte. Mamutes, lobos e ursos, pinheiros e ciprestes, poderiam ter transitado livremente por gélidas, porém sólidas, pontes, contudo derretidas pelo clima mais quente que se seguiu. Da mesma forma, pontes de gelo poderiam ter unido as Américas de norte a sul, ligando as Rochosas e os Andes, o que permitia explicar alguns fatos adicionais.

 

A descoberta de fósseis de equinos na América, onde o cavalo moderno foi reintroduzido pelos colonizadores europeus e se reproduziu sem limites, era explicada esplendidamente pela lógica da mudança climática global recente, que levara à extinção uma forma que agora se mostrava plenamente adaptada àquele mesmo ambiente em época anterior ao domínio do gelo. Para os criacionistas, defensores dos arquétipos ou não, era impossível explicar como o cavalo podia viver tão bem em um continente do qual fora extinto.

 

Hoje, a ideia de mudanças climáticas globais nos parece óbvia, mas, em escala planetária, ela teve em Charles Darwin um de seus primeiros defensores. Mal sabia ele que esta ideia seria, até hoje, crucial para compreender a chegada do ser humano ao continente americano. Não por acaso, até hoje os que se recusam a aceitar a evolução biológica também rejeitam a ideia de mudanças climáticas globais antropogênicas.

 

Uma das questões centrais focalizadas por Darwin diz respeito justamente à “peculiaridade”, como ele diria, das espécies que vivem em ambientes muito distantes, mas que se mantêm similares. Segundo os mais renomados cientistas de seu tempo, como Owen, Cuvier, e seu aluno Agassiz, que comparecem diversas vezes citados neste livro, não haveria nenhum sentido de paisagens muito parecidas serem povoadas por espécies muito distintas. Arquipélagos oceânicos formados por terrenos vulcânicos, como Cabo Verde e Galápagos, deveriam conter as mesmas formas básicas, animais e plantas muito parecidos, mas, apenas ligeiramente diferentes segundo as condições locais, por derivarem de um mesmo “arquétipo ideal” especialmente criado para aquele tipo de ambiente.

 

Darwin impôs uma derrota humilhante a esse argumento, mostrando como plantas e animais de lugares semelhantes eram absolutamente distintos. As espécies de Cabo Verde eram nitidamente derivadas daquelas do continente africano; ao pisar em Galápagos, o viajante tinha a impressão de ainda estar no continente americano. No entanto, como previa sua teoria, nesses locais se encontravam espécies únicas, “peculiares” ou, como dizemos hoje, endêmicas, encontradas apenas ali.

 

Esse raciocínio poderia ser generalizado, logo percebeu Darwin. As partes altas das montanhas poderiam ser vistas como “ilhas” de frio e não surpreendia que apresentassem biotas semelhantes, em especial depois de um período glacial, que teria feito verdadeiras pontes entre cumes distantes. Com o aumento da temperatura e o consequente derretimento do gelo, essas regiões teriam voltado a ficar isoladas.

 

Florestas, lagos, pradarias, enfim, os mais diferentes habitats eram, cada um a seu modo, “ilhas” que poderiam perder ou ganhar habitantes de regiões próximas. Portanto, não havia “arquétipos ideais”, especialmente criados, mas uma história de ancestralidade que podia ser observada tanto na direção horizontal, na distribuição dos seres vivos da atualidade, como na direção vertical, nos restos de épocas passadas revelados pelos geólogos. Esses dois eixos foram explorados nessas capítulos pareados finais.

 

Ao concluir o livro com um capítulo de síntese, Darwin reservou a estocada de misericórdia no cambaleante monstro da natureza imutável. Estava bem assentada, em Aristóteles, a ideia de equilíbrio estático na natureza, vista como eterna e imutável, na qual não há carência ou desperdício, que nada falta ou excede ao necessário, que cada característica tem uma finalidade específica a explicar sua existência, e que nada ocorre por acaso. Essa imagem, depois de cristianizada, compatibilizada com a ideia de um início (Genesis) e fim (Apocalipse), é o alicerce invariável da visão dogmática dos criacionistas de linha judaico-cristã e maometana, até nossos dias.

 

Outro testemunho da imperfeição eram as extinções. Como explicar o desaparecimento de espécies em um mundo em perfeito equilíbrio estático? O desaparecimento de uma única forma, de um único pilar, faria vir ao chão os andaimes da criação! Quando uma presa vai à extinção, do que se alimentará seu predador? As mudanças das condições ambientais documentadas no registro geológico eram o cenário ideal para a explicação evolucionista, ao prever o surgimento de novas espécies ao lado da extinção das antigas formas invariáveis.

 

Darwin passou a demolir esse edifício de base aristotélica ao discutir os órgãos vestigiais e rudimentares, falando, por exemplo, dos élitros fundidos a proteger as asas de besouros que não voam, dos olhos de animais de vivem na escuridão total, das rebarbas dos carrapichos das plantas que vivem em ilhas sem mamíferos, dos gansos que vivem grande altitude com os pés palmados, inúteis em suas caminhadas pelas rochas. Qual a utilidade das asas do ganso das ilhas Malvinas, se ele é incapaz de voar? Qual a utilidade dos olhos do tuco-tuco sulamericano, frequentemente infeccionados, se ele vive na escuridão dos túneis escavados debaixo dos campos gaúchos? O que faz um pica-pau endêmico dessas paragens, se ali não há árvores? Enfim, o livro se fechava discutindo a insofismável marca da falta de utilidade de órgãos de plantas e animais, contrariando aqueles que viam o “princípio da utilidade” por toda parte. Como justificar essa abundância sem necessidade, esse desperdício?

 

Essa ideia algo vaga de que o mundo estava organizado de maneira perfeita, de modo a minimizar o sofrimento e ampliar a felicidade de todas as espécies do planeta, muito lembrava as ideias do filósofo estagirita, perfeitamente alinhado com o “princípio da utilidade”. A função do guizo da cascavel seria a de alertar suas presas, dando a elas a chance de evitar sofrimento? A beleza das formas da natureza teria sido criada com o intuito de alegrar os olhos humanos? Essas eram ideias alinhadas com a doutrina do chamado utilitarismo, de Jeremy Bentham (1748-1832), muito influente no clima vitoriano da época. “Essa doutrina, se verdadeira, seria absolutamente fatal para a minha teoria” escreveu Darwin no capítulo em que enfrenta as maiores dificuldades para a os mecanismos evolutivos.

 

Nesta primeira edição Darwin não teve receio de indicar com clareza o que pensava da evolução humana. Justamente ao discutir as ideias do utilitarismo britânico, que via nas variações dos seres vivos formas de evitar a monotonia aos olhos humanos, ele percebeu que poderia explicar as variações entre as raças humanas, “tão fortemente marcadas”, por meio da “seleção sexual de um tipo particular”. Quando escreveu essas palavras, ele tinha em sua escrivaninha os dois volumes do livro de seu estimado James Cowles Prichard (1786-1848), que discutia as raças humanas, utilizando inclusive pranchas coloridas, outra sofisticação gráfica para a época. Eles ganharam algumas marcas e recados a lápis, por exemplo: “como meu livro será parecido a este”.

 

No entanto, Darwin decidiu encerrar a frase sobre a seleção sexual guiando a evolução humana dizendo que “sem entrar aqui em muitos detalhes, meu raciocínio parecerá superficial.”. E mudou de assunto com um novo parágrafo. De fato, como poderia abordar em poucas linhas, naquele capítulo 6, o que não havia conseguido fazer no capítulo específico sobre seleção natural (4), quando deixou uma marca em seu manuscrito que bem indicava essa intenção? Como fazer em poucos parágrafos o que havia tomado a Prichard centenas de páginas? Pois apenas em seu livro de 1871, Descent of Man, Darwin pode discutir “com muitos detalhes” seus pontos de vista sobre a ação da seleção sexual nas raças humanas.

 

Esse trecho radicalmente herético acabou suprimido na última edição do livro, em 1872, o que gera alguma suspeita de que Darwin tivesse voltado atrás em suas convicções sobre a ação dos mecanismos evolutivos na espécie humana. No entanto, há três fatos a considerar. O primeiro deles é a manutenção ao longo de todas as edições da conhecida frase “luz será lançada sobre a origem do Homem e sua história”, que tanto escandalizou o público. Isso ocorreu até mesmo com o geólogo Heinrich Georg Bronn (1800-1862), que traduziu esta primeira edição para o alemão, a ponto de simplesmente suprimi-la da versão que circulou na Alemanha logo em 1860! O segundo fato foi o de que a edição de 1869 traz modificações no sentido de fortalecer sua certeza de que a seleção sexual atuou na espécie humana. Não por acaso, ele estava justamente terminando a redação de outro livro sobre o assunto e acumulava evidências a favor de suas ideias. Por fim, a edição de 1872, que se tornou o texto canônico para as traduções que circularam mundo afora até nossos dias, foi publicada um ano depois da extensa obra sobre as raças humanas, seu famoso Descent of Man, publicado em 1871. Portanto, Darwin suprimiu o trecho simplesmente porque acabara de publicar, “com muitos detalhes”, seus raciocínios sobre a seleção sexual na espécie humana. Deixar o trecho inalterado soaria como simples descuido.

 

Nesta edição brasileira feita com muito cuidado em cada detalhe pela equipe editorial de Carla Bitelli, ao lado da esmerada tradução de Daniel Moreira Miranda, o leitor encontrará identificadas espécies que aparecem nomeadas de maneira equivocada desde seu manuscrito. Desde o primeiro ensaio, escrito em 1844, Darwin destaca o ritual de acasalamento do “dancing rock-thrush”. Seu nome foi posteriormente retificado para “rock-thrush of Guiana” em todas as edições deste livro, na seção sobre seleção sexual. O nome aparece traduzido para o português como “melro” ou “tordo-das-rochas”, desde a edição portuguesa de 1913, realizada por João da Mesquita Paul (1875-1946). A confusão se justifica, vez que o nome popular “rock thrush”, na Inglaterra de meados do século XIX, designava a espécie Monticola saxatilis, descrita desde os tempos de Lineu. No entanto, essa espécie não ocorre na Guiana, nem em lugar algum do Novo Mundo. Ademais, os melros não possuem ritual de acasalamento incomum ou “dançante”. Na verdade, Darwin se equivocou, pois se referia ao “Guianan Cock-of-the-rock”, ou seja, o galo-da-serra-do-pará (Rupicola rupicola). Essa bela ave da nossa fauna, após mais de um século de injustiça e anonimato, ganhou justa homenagem na quarta capa do livro (e uma longa nota no capítulo sobre seleção natural).

 

O capítulo final de “Origem das Espécies”- absolutamente inspirado, profético e grandioso – manteve a mesma estrutura da primeira à última edição. Ele é testemunha não apenas da solidez do argumento evolucionista, como também da necessidade de alcançar o grande público por meio de algumas concessões. Darwin escreve não apenas para os especialistas, mas também (e ao mesmo tempo) para o grande público, o que, aliás, explica a alternância de estilos literários ao longo do livro[8]. Falar dos órgãos rudimentares e vestigiais dos seres vivos foi um golpe de morte na ideia de uma criação especial, generosa, sábia, estática e eterna, do “projeto Inteligente” do qual falara o reverendo Joseph Butler, em epígrafe inserida logo na segunda edição. Era uma indicação de que a radicalidade da versão original deveria ser amenizada tanto quanto possível.

 

Assim, junto com a epígrafe do teólogo anglicano logo na abertura do livro, Darwin inseriu duas vezes a menção ao “Criador”, em maiúscula reverencial, no último capítulo, ao final de duas frases que falam do ser biológico primitivo, concreto e material, no qual a vida teria sido inicialmente “soprada”. A partir de 1860, ela passou a ser soprada “pelo Criador”. Uma das inserções – é verdade- foi retirada, mas a segunda, justamente na última página do livro, foi preservada da segunda até a última edição. Assim, logo depois de derrubar a ideia de uma providência divina a guiar todos os detalhes de nossa existência, Darwin se esforçava em acalmar o leitor falando da possibilidade de convivência entre ciência e religião, e da grandiosidade que existe na perspectiva evolucionista. Ao ler esta primeira edição, fica o leitor preservado dessas titubeantes inserções, das quais ele dirá ter se arrependido, em carta endereçada a Hooker em 1863, sem, contudo, produzir qualquer efeito no texto.

 

Darwin não nos legou um conjunto de verdades absolutas, ao contrário, muito do que afirmou não resistiu ao conhecimento atual, como se verá em notas técnicas espalhadas ao longo de todo o livro. Os especialistas não admitem, por exemplo, que a bexiga natatória dos peixes tenha sido a forma primitiva de nossos pulmões, ou que os chinchilas sejam descendentes diretos de marsupiais, ideias, aliás, que não eram dele. Mas, outras, como o extermínio de gramíneas sul-americanas nos pampas argentinos, e a explicação da existência de “fósseis vivos”, como a piramboia e os marsupiais[9], eram suas e hoje não fazem o menor sentido. Sua especulação sobre as populações humanas sul africanas, descritas pelos holandeses, seria vista como racista hoje em dia.

 

Ao mesmo tempo, Darwin demonstra forte personalidade, deixando clara sua crítica ao racismo e à escravidão, recusando-se a utilizar termos com conotação pejorativa para designar as formigas aprisionadas em formigueiros de outra espécie. As palavras “esclavismo”, “esclavagismo” ou “dulosis”, a designar essa relação ecológica em diversas línguas, nada mais são do que eufemismos alusivos a uma relação de dominação social humana que Darwin presenciou no Brasil e descreveu com ódio e aversão[10]. Darwin se perguntava inclusive como seria possível ver algum indício de “design inteligente” nessa inclemente e brutal relação entre seres vivos.

 

O legado desta obra, portanto, não se encontra no sentido literal de cada palavra, mas na originalidade do pensar criativo, capaz de dar interpretação absolutamente inovadora a vastas classes de fatos bem estabelecidos. Darwin utilizou aquilo que não era possível conceber como um todo coerente para erigir um sólido edifício teórico a partir do qual o intelecto humano poderia enxergar muito adiante. Ele fez previsões testáveis, muitas das quais se comprovaram empiricamente, como a origem da baleia a partir de um mamífero terrestre, e não do aperfeiçoamento de um réptil marinho, como pensavam muitos. Ele profetizou a ideia da evolução lançando luz na misteriosa escuridão da origem do ser humano, o que vem se confirmando a cada achado fóssil nos terrenos africanos.

 

Se Galileu foi o primeiro a ver com os próprios olhos os confins do sistema solar e imaginar a imensidão do universo, Darwin talvez tenha sido o primeiro a enxergar na longínqua origem da biodiversidade a razão do fenômeno humano. Somos apenas mais uma espécie, de origem recente e extinção não muito distante, como todas as demais. Galileu nos demoveu da certeza da grandiosidade astronômica de nosso planeta, e Darwin nos convenceu da pequeneza biológica dos humanos: pequenas folhas na extremidade de um dos inúmeros ramos da frondosa árvore da vida.

 

 

 

Nelio Bizzo

 

Professor Titular da Universidade de São Paulo, Fellow da Royal Society of Biology de Londres, realizou sua pesquisa de doutorado com os originais manuscritos de On The Origin of Species, e biblioteca pessoal de Charles Darwin, mantidos na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. É pesquisador 1A do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), e coordenador científico do Núcleo de Pesquisa em Educação, Divulgação e Epistemologia da Evolução “Charles Darwin”, ligado à Pro-reitoria de Pesquisa da USP, e do Projeto Temático BIOTA-FAPESP/Educação que congrega pesquisadores da USP, UFABC, UNIFESP, USCS e Instituto Butantan.

 

 

 

 

 

[1]              N do RT.: Sir Francis Leopold McClintock, membro da Marinha Britânica, serviu em diversas expedições para localizar o paradeiro da expedição desaparecida no Ártico, entre 1848 e 1859, quando retornou em Setembro, recebendo em seguida o título de Sir (Cavalheiro).

 

[2]              N do RT.: Sir John Franklin (1786-1847), oficial da Marinha Britânica, que se notabilizou pela exploração dos mares polares, pioneiro no mapeamento da Antártida e do Ártico.

 

[3]              A “Guerra de 1812” é vista, do ponto de vista britânico, como parte das guerras napoleônicas, mas, como envolveu batalhas pela posse de terras americanas, é tida também como a “Segunda Guerra de Independência” na perspectiva estadunidense.

 

[4]              A letra do hino nacional dos Estados Unidos foi baseado no poema “A defesa do Forte McHenry”, e fala dessa batalha na qual “bombas eram lançadas ao ar”, algumas delas provenientes desse vaso de guerra, posteriormente reformado para exploração polar.

 

[5]              Joseph Dalton Hooker (1817-1911), embora médico de formação, foi um dos maiores botânicos britânicos de sua época, tendo participado da expedição do HMS Erebus ao polo Sul em 1839, com o capitão James Ross, em sua busca pioneira pelo polo sul magnético.

 

[6]              Thomas Henry Huxley (1825-1895), zoólogo inglês que se notabilizou pela árdua defesa das ideias evolucionistas, logo após a primeira edição de “A Origem das Espécies”, ganhando a alcunha de “o buldogue de Darwin”.

 

[7] Sir Richard Owen (1804-1892), Geoges Cuvier (1769-1832)e Louis Agassiz (1807-1873) foram naturalistas que despontaram como ícones do pensamento anti-evolucionaista darwiniano, defendendo a criação especial de formas básicas (os “arquétipos ideais”), que teriam se amoldado às condições locais.

 

[8]E a profusão de notas inseridas por este revisor técnico ao longo dos capítulos, por o que se escusa antecipadamente.

 

[9]Darwin afirma no livro que os “fósseis vivos” habitaram por muito tempo lugares remotos e, por isso, teriam sido preservados da seleção natural. No último capítulo, titubeante, ele afirma que a expressão é apenas metafórica, mas fica a dever uma explicação alternativa.

 

[10] V. a seção sobre formigas escravizadoras no cap.7. Uma discusão aprofundada pode ser vista no livro de Adrian Desmond e James Moore, A Causa Sagrada de Darwin (São Paulo: Record, 2009).

 

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