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Parte 1 (para a parte 2 clique aqui —> https://bit.ly/3asYHmi)
A família dos vírus Corona causou a primeira grande pandemia do novo milênio logo em 2002-3, e ao final de 2019 reaparece, de maneira que não poderia ser chamada de surpreendente. Ao contrário, sua reaparição, com a gravidade que tem sido observada, já era prevista pelo menos desde 2007 ([1]). O rápido crescimento econômico da China levou a uma demanda crescente por proteínas animais, incluindo as de caça exótica, utilizados na alimentação, como gatos-de-algália, pequenos mamíferos da Ásia (onde são chamados “musang”) e África (Fig 1).
Fig 1- Gatos -de-algália (Paguma larvata, no destaque) à venda em mercado na China, prováveis vetores eventuais de corona vírus em 2002.
Muitos desses mamíferos exóticos são criados em fazendas e vendidos em mercados das grandes cidades, colocados em gaiolas superlotadas, sem qualquer medida higiênica ou de biossegurança, em locais úmidos e pouco ventilados. Acredita-se que nessas condições os animais tenham se contaminado, levando à transmissão do novo vírus de animais para humanos, provocando a primeira pandemia do milênio, ainda em no final de 2002. Há evidências de que gatos-de-algália tenham sido infectados por morcegos-ferradura, também vendidos messes mercados, e deles para seres humanos. Agora, a hipótese mais provável é a de que o vírus tenha circulado em pangolins (fig 2) e deles para seres humanos, provavelmente de modo indireto (veja quadro ao final, com matéria de Reginaldo José Lopes, FSP 28/03/2020))
Fig 2- Pangolim, o mais provável transmissor do vírus SARS-CoV-2 para humanos.
Entre o final de 2002 e o verão de 2003 um surto da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) resultou em 8098 casos prováveis e 774 mortes em 29 países([2]). Em 2012 foi detectada no Oriente nova variante de coronavírus (MERS-CoV), responsável pela Síndrome Respiratória do Médio Oriente (MERS).
Houve um repique da SARS no final de 2003, após a retomada do mercado de animais exóticos no sul da China e pouco depois foi descoberta variante de um vírus muito semelhante em morcegos-ferradura. Portanto, já havia sido apontado que a SARS poderia retornar se fossem restabelecidas as condições requeridas para introdução, mutação, amplificação e transmissão desse tipo perigoso de vírus. Essa parece ter sido a origem do novo SARS-CoV-2.
A análise recente do material genético desse novo vírus revelou mutação na região relacionada à proteína de ancoragem do vírus à célula, da mesma forma que ocorre no material genético de certa linhagem presente os morcegos. Tudo indica que essa mutação, que ocorre de modo aleatório, seja a responsável pela nova variante do vírus, deixando sem qualquer fundamento as suposições sobre uma suposta arma biológica ([3]).
O CICLO DOS VÍRUS CORONA
O nome dessa família de vírus advém da imagem obtida em microscópio eletrônico de grande aumento, que mostram estruturas redondas com aspecto de uma coroa solar (Fig 3).
Fig 3. Vírus-Corona em foto de grande aumento (a) e sua representação esquemática à direita (b) [fonte: (3)]
Os pequenos “raios solares” são, na verdade proteínas conhecidas pela inicial “S” (de “spike”=espinho), que são indispensáveis para a aderência a células de animais, que resultam na fusão do envelope viral, composto de uma bicamada lipídica, com a membrana celular, de igual natureza. A glicoproteína de membrana é relativamente pequena e tem papel importante na montagem da partícula viral. Há pelo menos uma forma variante que tem adicionalmente ação no ciclo de vida da célula hospedeira, causando sua destruição (apoptose). Com a morte da célula, são liberadas as partículas virais e novas células são infectadas.
Na membrana celular de tecidos epiteliais há proteínas que promovem reações químicas em proteínas do meio externo. Quando essa reação química é provocada na proteína “S” do vírus, ela passa a facilitar a fusão dos envelopes lipídicos viral e celular, facilitando a entrada da partícula viral na célula. O receptor chave da célula hospedeira ativado pela proteína “S” é a Enzima Conversora de Angiotensina 2 (ACE2, em português ECA2), a qual, embora presente em virtualmente todos os órgãos, é muito mais frequente nas membranas das células epiteliais do pulmão e intestino delgado, mas também no fígado, coração, interior de vasos sanguíneos, testículos e rins (4). A figura 4 traz um modelo da ancoragem da proteína S à Enzima Conversora de Angiotensina 2.
Figura 4. Ancoragem de corona vírus em célula epitelial humana por meio da ligação da proteína “S” viral e da molécula receptora, Enzima Conversora de Angiotensina 2 (ACE2). [Modificado de 5].
Desde que evidências robustas apontaram para a enzima ACE2 como receptor funcional dos corona vírus, em 2005 (6), indicações terapêuticas passaram a ser pesquisadas. Ao mesmo tempo, a proteína “S” passou a ser o alvo preferencial para estudos sobre vacinas e testes de contágio.
Uma vez dentro da célula, depois da fusão dos envelopes lipídicos, tem início a desmontagem da partícula viral em processo complexo e ainda não totalmente esclarecido, que culmina na liberação do genoma viral, que é composto de RNA (Fig 3a). Ele passa a comandar processos de transcrição e tradução, quando tem início o processo de produção das proteínas virais. Algumas dessas proteínas atuam na montagem das partículas virais e na modificação de algumas proteínas. Começam a se formar vesículas de membrana dupla, com RNA genômico viral e proteínas estruturais, com a montagem viral no retículo endoplasmático e brotamento de vesículas no complexo golgiense.
ÁLCOOL GEL, ÁLCOOL LíQUIDO, SABÃO E PARTÍCULAS VIRAIS
O brotamento das partículas virais no complexo golgiense acaba por fazer da membrana da célula parte do envelope viral, que mantém a bicamada lipídica. Por essa característica estrutural os corona vírus fazem parte dos chamados “vírus envelopados”, como o vírus da gripe (vírus influenza) e do sarampo, razão pela qual solventes de lipídios, como o álcool, são indicados como desinfetantes para esse tipo de vírus. A ação solvente do álcool é importante contra todas as superfícies com membrana celular, de composição lipídica, como bactérias e protozoários. (Fig 5).
Fig 5 Álcool gel é recomendado para higienização das mãos contra vírus envelopados e bactérias.
O álcool gel a 70º GL é indicado para a higienização das mãos pois é menos agressivo à pele do que o álcool líquido. Na mesma concentração o álcool líquido utilizado de maneira repetida pode provocar problemas indesejados, como dermatites. Ele é indicado para desinfetar superfícies de contato frequente, como corrimãos, maçanetas etc. Aparelhos eletrônicos pessoais, este é o caso de celulares, não devem ser compartilhados e devem ser higienizados após serem desligados. Podem ser desinfetados com lenços com álcool isopropílico 70º GL (vendido em lojas de componentes eletrônicos) ou agente desinfetante a base de cloreto de amônio, mas evitando alvejantes (oxidantes poderiam alterar a cor dos aparelhos) segundo recomendações de fabricantes (7).
Agentes que dissolvem gorduras, como o álcool, são úteis contra partículas virais envelopadas, mas esse não é o caso de partículas virais não envelopadas, como os vírus do resfriado comum, da poliomielite e vírus que causam hepatite e gastroenterites (rotavírus). Da mesma forma, esporos de bactérias e fungos podem ser resistentes ao álcool. Isso significa que as práticas que tendem a proteger a população contra vírus corona e influenza, baseadas no uso de desengordurantes em superfícies e objetos de manipulação frequente, como maçanetas e torneiras, não são eficientes contra vírus que causam sintomas semelhantes, como ocorre com o resfriado. Disso decorre a necessidade de conjugar diversas práticas na prevenção da transmissão das viroses.
Nesse sentido, a higienização das mãos com água e sabão deve ser adotada paralelamente, pois é eficiente não apenas contra partículas gordurosas. Estas são particularmente afetadas, como no caso dos vírus envelopados, mas o enxágue com água corrente remove partículas de toda natureza que estejam aderidas à pele. Mas lavar as mãos, embora seja algo corriqueiro em nossas vidas, não é tão simples quanto parece (fig 6).
Fig 6: Lavar as mãos é um ato corriqueiro, mas deve ser feito com atenção para lavar, de fato, toda a superfície.
Na sequência de fotos abaixo, luvas brancas e sabão colorido nos mostram como uma lavagem comum deixa muita área sem sabão, em especial no polegar, parte lateral da mão, região das unhas e pulso (Fig 7).
Fig 7: Ao lavar as mãos de maneira rápida, muitas regiões permanecem sem sabão. É preciso atentar para que toda a superfície de ambas as mãos receba sabão para que a lavagem tenha o efeito desejado. A cor branca da luva expõe a parte sem sabão colorido, expondo a as áreas que normalmente permanecem infectadas, mostrando a necessidade de diversas manobras para lavar a região das unhas, polegares, pulsos e as partes laterais.
A transparência do álcool gel e seu odor forte podem nos enganar e fazer pensar que apenas esfregando as palmas das mãos estaremos desinfetando toda a mão. Mas a figura 7 nos mostra como a lavagem com sabão pode ser feita de maneira eficiente.
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No próximo post: EPIDEMIOLOGIA DOS CORONA VÍRUS: formas de transmissão em condomínio residenciais, aviões e outras lições da pandemia anterior
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E seguem os links das referências utilizadas.
[1] https://cmr.asm.org/content/cmr/20/4/660.full.pdf
[2] https://www.nature.com/articles/nrmicro775?draft=journal
[3] https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-biologicas/estudo-genetico-mostra-por-que-virus-da-covid-19-nao-foi-feito-em-laboratorio/
[4] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/15141377
[5] https://www.thelancet.com/journals/lanres/article/PIIS2213-2600(20)30116-8/fulltext
[6] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16007097
[7] https://support.apple.com/en-us/HT207123
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